Na última quinta-feira (21) foi aprovado na Câmara dos Deputados e encaminhado ao Senado Federal um Projeto de Lei (PL) especialmente proposto em função da pandemia de COVID-19. Agora, o projeto segue para a avaliação do Senado Federal e, posteriormente, para sanção presidencial. Em suma, o PL implica em dois cenários: negociação ou recuperação.
O PL nº1.397/2020 trata de um assunto essencial para muitos empresários atualmente: a possibilidade de suspender a exigibilidade de dívidas para poder negociá-las. Se aprovada, a lei determinará “medidas de caráter emergencial destinadas a prevenir a crise econômico financeira de agentes econômicos”. Além disso, será alterada, temporariamente, o regime jurídico da Lei de Falência e Recuperação Judicial (LFR).
PREVENÇÃO À INSOLVÊNCIA
O PL prevê a criação de um sistema de prevenção à insolvência do agente econômico. Esse agente econômico (devedor) pode ser a pessoa jurídica de direito privado, o empresário individual, o produtor rural e o autônomo que exerce suas atividades regularmente. Estão expressamente excluídos desse sistema de prevenção à insolvência o consumidor (conforme entendido pelo Código de Defesa do Consumidor). Se mantido o texto legislativo em trâmite hoje, também não serão incluídos nos sistemas os cooperados e as cooperativas.
Esse sistema criado inclui a suspensão de ações judiciais de natureza executiva. Para que a ação seja suspensa, a dívida cobrada deve ser relativa à discussão ou descumprimento de obrigações vencidas após 20 de março de 2020. São suspensas, também, as ações revisionais de contratos.
Enquanto durar a suspensão, retroagindo até o dia 20/03, não são aplicáveis multas de mora em contratos em geral, nem as multas decorrentes do inadimplemento das obrigações tributárias. Na prática, o contratante, que buscar a proteção legal da lei que vier a se originar deste PL, poderá deixar de cumprir obrigações contratuais; e o contribuinte poderá deixar de cumprir uma obrigação tributária (acessória ou principal). Em nenhuma dessas atitudes, haverá aplicação de multa.
Os credores, por sua vez, não poderão cobrar, executar ou se fazer valer de garantias reais, fiduciárias, fidejussórias e de coobrigações. Também não poderão ser decretadas falências, nem rescisão unilateral de contratos. Caso um contrato preveja esse tipo de rescisão, ou vencimento antecipado decorrente dela, tais cláusulas serão nulas.
Contudo, os créditos de natureza salarial, ou de outras naturezas desde que oriundos de contratos firmados (ou repactuados) posteriormente a 20/03, não serão suspensos junto com os demais. No caso das operações compromissadas ou de derivativos, o exercício do direito de vencimento antecipado ou compensação tampouco serão suspensos.
CONTRATOS DE FINANCIAMENTOS E DESCONTO DE RECEBÍVEIS
Durante as suspensões, o agente econômico devedor poderá celebrar contratos de financiamentos e operações de desconto de recebíveis. Isso poderá ser firmado com qualquer agente financiador, fundos de investimento e, até mesmo, os seus próprios credores, sócios ou sociedades do mesmo grupo econômico. Porém, essas permissões são destinadas exclusivamente ao custeio da reestruturação (ou despesas de reestruturação) e preservação do valor dos ativos.
As operações permitidas tem o único objetivo de gerar liquidez, o que é essencial para as empresas neste momento de crise econômico-financeira. Ainda mais se tratando de uma crise global. Contudo, a liquidez buscada não deve ter um desvio de finalidade. O ideal buscado pelo projeto de lei é de preservação das empresas e das atividades empresariais. Portanto, não se deve, com o subterfúgio de buscar a manutenção da empresa, almejar vantagem pessoal ou para a pessoa jurídica. Como base das relações do direito privado, as ações tornadas efetivas pela lei oriunda deste PL devem ser guiadas pela boa-fé.
Para reforçar a ideia de vinculação do crédito recebido ao fim específico, o PL impede que tais créditos sejam objetos de recuperação judicial. Caso o devedor ingresse com pedido de recuperação judicial e dele decorra uma falência, tal crédito será tido como extraconcursal (ficará alheio ao concurso de credores). Para o credor, diferentemente dos credores submetidos ao concurso, há a vantagem de não ser submetido ao deságio e poder executar obrigações e valores, poder agredir o patrimônio do devedor diretamente. Todavia, há a desvantagem de ceder uma quantia relativa de dinheiro a um devedor que dificilmente pagará (se vier a enfrentar um pedido de falência).
BUSCA PELA NEGOCIAÇÃO E A NEGOCIAÇÃO PREVENTIVA
A cobrança de garantias ou pedidos de falência serão proibidos por de 30 (trinta) dias a partir da publicação da lei. Essa benesse da lei que venha a ser aprovada tem uma finalidade específica: a busca pela negociação. Neste primeiro período de 30 dias, segundo o texto, os devedores e credores deverão buscar a renegociação de suas obrigações, de forma direta e extrajudicial, devendo levar “em consideração os impactos econômicos e financeiros causados pela pandemia de Covid-19”.
Esse tema tem sido levantado por nós desde março. O melhor caminho para a solução dos problemas econômico-contratuais surgidos com a pandemia é a negociação. Seguramente, na impossibilidade de negociar, não se pode esquecer completamente das possibilidades jurídicas para contratos nacionais e internacionais: força maior, teoria da imprevisão, equilíbrio contratual. Não à toa, diversas ações judiciais foram propostas, buscando suspender contratos ou obrigações contratuais específicas, visando a sobrevivência das empresas. Contudo, numa época em que todos os lados estão perdendo dinheiro, não se pode lançar mão de medidas mais gravosas antes de tentar efetivamente a negociação.
Pensando nisso, o texto do projeto de lei prevê uma figura processual nova. O PL estabelece a negociação preventiva. Caso o agente econômico enquadre-se nos requisitos da lei, ele poderá ajuizar uma única vez esse procedimento de jurisdição voluntária. Isso deve ser iniciado em até 60 (sessenta) dias do prazo de negociação, ou seja, a negociação preventiva deverá ser ajuizada em até 90 (noventa) dias da publicação da lei.
Urgência pela Aplicação do Texto do Projeto de Lei
Tendo em vista esses prazos, é necessário que as empresas comecem a pensar nas possibilidades do texto legal desde agora. Embora não seja certa a aprovação do PL, também não há certeza de quando o essa aprovação ocorreria (lembrando que foi ao Senado e deverá ir à Sanção Presidencial). O melhor é que saísse o quanto antes, podendo preparar as medidas todas para junho. Porém, não é de se surpreender se levar mais duas ou três semanas – o que seria um atraso imenso, em função da crise que se encontra.
Essa urgência do setor empresarial para pensar nas possibilidades legais do texto do PL se deve a alguns fatores. O primeiro deles é o modo como as negociações serão feitas. Não se pode simplesmente pensar em negociar dívidas atuais e querer resolver tudo em noventa dias sem uma boa estratégia. Segundo é a preparação de documentos que vão influenciar no primeiro fato. O terceiro, e pior, são as possíveis consequências jurídicas decorrentes do início das negociações com base no texto do projeto de lei. Sobre este último fator, falaremos um pouco mais pra frente.
Esse novo procedimento da negociação preventiva é bem delimitado no texto do PL. A distribuição do pedido acarreta a suspensão das cobranças mencionadas, devendo o juiz verificar o enquadramento do devedor como “agente econômico” (nos termos do texto). Caso o devedor não preencha os requisitos legais, o procedimento será extinto e haverá cessação da suspensão.
Somente terão direito a utilizar do procedimento de jurisdição voluntária os devedores que comprovarem redução igual ou superior a 30% (trinta por cento) do faturamento. Essa redução será verificada em relação à média do último trimestre de atividade em 2019, devendo ser feito por laudo ou demonstração contábil.
Prazos para a Negociação Preventiva
O procedimento ocorrerá por no máximo 90 dias – caso o devedor peça prorrogação desse prazo, o projeto prevê a autuação como pedido de recuperação judicial, legitimando os possíveis credores. Durante esse prazo, as partes deverão buscar renegociação das obrigações extrajudicialmente. O devedor deverá dar ciência aos seus credores sobre o procedimento, mas os credores não têm a obrigação de participar das sessões.
Depois do prazo de 90, o devedor prestará informações ao juízo, demonstrando (com transparência) os resultados das negociações. Após isso, o devedor tem 60 dias para encaminhar um relatório dos trabalhos desenvolvidos. Somente então, o procedimento poderá ser encerrado e arquivado. Quem apreciará esse procedimento será o juiz competente para julgar eventual Recuperação Judicial ou Falência.
Para facilitar o entendimento dos prazos dispostos na lei, há a seguinte tabela:
Início | Termo final | O que suspende? | O que fazer? | |
Suspensão de execuções e falências | Publicação da lei para obrigações vencidas após 20/03/2020 | 30 dias após a publicação da lei | Ações de Execução; Revisão de contratos;Multas de mora;Cobrança de garantias;Decretação de falência;Rescisão unilateral de contratos;Vencimento antecipado. | Organizar as contas e documentos da empresa. Traçar estratégia de abordagem |
Negociação | Não há prazo | 90 dias após a publicação da lei | Os mesmos itens | Abordar credores definidos na estratégia. |
Negociação Preventiva | De 30 a 90 dias da publicação da lei | 90 dias após a distribuição | Os mesmos itens | Registrar as negociações por etapas. |
Ao credor, não serão possíveis, dentro do procedimento voluntário, resposta (contestação), manifestação, averiguação ou perícia em relação ao pedido do devedor.
POSSIBILIDADE DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL
Caso a empresa peça recuperação judicial após a negociação preventiva, o período de suspensão conhecido como stay period terá deduzido o tempo de suspensão utilizado em razão da lei. O stay period é um prazo de suspensão pela LFR por no máximo 180 (cento e oitenta dias), no qual não correrão contra a empresa recuperanda os prazos prescricionais, ações e execuções. Portanto, utilizando os prazos definidos no PL – que podem somar 180 dias -, corre o risco de a empresa iniciar uma Recuperação Judicial sem stay period.
Conforme mencionado, na hipótese de a empresa pedir prorrogação do prazo de 90 dias da negociação preventiva, entende-se como um pedido de recuperação judicial. Esse pedido deverá ser instruído com todos os documentos que uma inicial de Recuperação Judicial necessita.
A possibilidade de recuperação judicial possui um impacto direto nos acordos formulados durante as fases de negociação. A negociação é feita com diversos credores ao mesmo tempo, por isso, há possibilidade de haver credores que tenham renegociado, e outros que não. Não há consequência obrigatória entre a inocorrência do acordo nas negociações e a recuperação judicial. Porém, se houver credores que renegociaram seu crédito e outros que, ao não renegociarem, levaram o devedor ao pedido de recuperação, há previsão específica.
Assim, na hipótese de pedido de recuperação judicial, os credores que firmaram acordo durante as suspensões terão suas garantias e direitos originais restabelecidos. Isso será feito em até 360 (trezentos e sessenta) dias contados da data do acordo, sendo abatidos os valores pagos e ressalvados atos praticados.
ALTERAÇÕES À LEI DE FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO JUDICIAL
O projeto de lei define algumas alterações à LFR, mas apenas para os processos que forem iniciados a partir da publicação da lei, até 31 de dezembro de 2020. O mesmo vale para os planos de recuperação judicial (ou extrajudicial) que forem aditados neste mesmo períodos.
Dentre as mudanças, está a alteração do quórum para aprovação do plano de recuperação extrajudicial. O texto da LFR, que prevê necessidade três quintos (3/5) dos crédito, será alterado temporariamente para “metade mais um” dos créditos de cada espécie. Todos os créditos existentes à época do pedido estarão sujeitos à recuperação extrajudicial, exceto créditos trabalhista e tributário.
O pedido de recuperação extrajudicial poderá ser apresentado com a anuência de um terço (1/3) dos créditos e um compromisso de atingir o quórum necessário em até 90 dias. O procedimento poderá ser convertido em recuperação judicial a pedido de devedor. Também, desde o pedido da recuperação extrajudicial, valerá o stay period da LFR, mas apenas para os créditos abrangidos pelo pedido.
Para as recuperações judiciais ou extrajudiciais em curso, não haverá exigência do cumprimento dos planos de recuperação por 120 dias da vigência da lei. Poderá, ainda, ser apresentado novo plano de recuperação (homologado ou não o original), com direito a novo stay period, limitado aos mesmos 120 dias. O plano aditado deverá, obviamente, ser levado à aprovação dos credores. A contagem dos votos levará em conta o crédito original (descontando valores eventualmente pagos).
O novo plano de recuperação poderá abranger créditos posteriores ao pedido de recuperação judicial. Isso apenas não valerá para financiamentos realizados com anuência do juízo da recuperação judicial.
Principais Alterações e Vantagens
Como principais mudanças, estão: (a) a possibilidade de pedir recuperação (judicial ou extra) para quem obteve a recuperação há menos de 5 anos (empresa, microempresa e empresa de pequeno porte); (b) a possibilidade de pedir homologação do plano de recuperação extrajudicial para quem obteve recuperação judicial ou pediu homologação de plano extrajudicial há 2 anos; (c) a alteração, para o pedido de falência, do valor mínimo de obrigação vencida de 40 salários mínimos para R$100.000,00 (cem mil reais); (d) a impossibilidade de decretação de falência pelo descumprimento obrigação do plano recuperação
Para as microempresas e empresas de pequeno porte, o parcelamento dos débitos poderá ser feito em até 60 (sessenta) parcelas (mensais, iguais e sucessivas). Será admitido o deságio ou desconto, e, se houver correção, as parcelas serão corrigidas monetariamente pela taxa SELIC. O primeiro pagamento da parcela será pago em até 360 dias, da distribuição do pedido ou do seu aditamento. A improcedência do pedido não acarretará em falência.
O PL determina, também, que, no âmbito da recuperação judicial, os atos administrativos de cassação, revogação, impedimento de inscrição, registro código ou número de contribuinte fiscal ficam suspensos. Por fim, consolidando o entendimento do STJ (Superior Tribunal de Justiça), em contradição ao Código de Processo Civil de 2015, o PL estabelece que os prazos estipulados serão contados em dias úteis.
NEGOCIAÇÃO OU RECUPERAÇÃO – QUAL CAMINHO SEGUIR?
O projeto de lei traz algumas possibilidades às empresas. Suas maiores vantagens são para as pessoas jurídicas que estão em recuperação judicial ou extrajudicial, e para quem já passou por esses procedimentos. Afirmamos isso, pois entendemos que o caminhos de negociação trazidos pelo PL devem ser vistos com muito cuidado.
Quase que a totalidade do empresariado brasileiro está buscando negociações desde o mês de março, com base no impacto econômico da COVID-19. O que o projeto de lei traz, na verdade, é uma possibilidade de tornar pública e transparente a vontade do devedor. Em razão do foro universal da LFR e da possibilidade de início da recuperação judicial, é possível afirmar que a negociação preventiva é um procedimento de jurisdição voluntária com litisconsórcio passivo. Isto é, o devedor não ajuizará um procedimento para cada credor, até mesmo porque não pode ajuizar mais de uma vez. Deve ser entendido, então, que o procedimento será ajuizado e contará, em seu polo passivo, com todos os credores com os quais se pretende negociar.
Ora, qual seria a diferença da negociação feita até a publicação da lei e a negociação posteriormente à publicação da lei? A resposta literal é a suspensão das ações de execução e de revisão de contratos, a impossibilidade de aplicar multa por descumprimento e a impossibilidade de decretação de falência. Essas benesses parecem mais desvantagens que vantagens, se comparado ao todo.
Afirma haver uma desvantagem quando se olha para as consequências da negociação. As negociações feitas até o momento poderiam resultar, ainda que finalizadas negativamente, numa tentativa interna de reestruturação de dívidas. O esforço do empresário seria para realizar uma adequação financeira, podendo ser cobrado judicial ou extrajudicialmente.
Riscos e Preparação
Por outro lado, se o resultado das negociações judicializadas (pelo texto do PL) for negativo, o devedor poderá amargar um processo de recuperação judicial. A recuperação judicial, como afirmam muitos especialistas, não deve ser temida. De fato não deve, mas para isso é necessário estar preparado para ela.
No mais, se aprovado o PL, é necessário lembrar que o prazo de 30 dias (primeiro prazo de suspensão, para negociação) é válido amplamente. Somente a partir do segundo prazo, para iniciar o procedimento de negociação preventiva, é que não poderá ser alegado de modo genérico. Portanto, é possível aproveitar as vantagens trazidas pela legislação, sem iniciar o procedimento da negociação preventiva.
Caso o prazo de 30 dias seja curto e o devedor opte por ajuizar a negociação preventiva, é necessário entender que o risco de isso se tornar um pedido de recuperação judicial é alto. Para isso, é indicado o acompanhamento de uma assessoria jurídica desde antes de iniciar as negociações. Tal qual é necessário preparar a empresa para a recuperação judicial, para iniciar as negociações é importante realizar um preparo de cenários. Além de simplesmente preparar para as negociações, a assessoria jurídica poderá iniciar, desde então, uma preparação para possível recuperação judicial.